A prática médica no Brasil Colonial

15 de janeiro de 2018
A medicina europeia chegou ao Brasil a bordo das caravelas de Pedro Álvares Cabral. Entre os principais integrantes da expedição desembarcou, em abril de 1500, João Faras, médico, astrônomo e astrólogo judeu, íntimo do rei D. Manuel I. Mas, se a chegada foi precoce, a disseminação dos saberes médicos e a aceitação da autoridade médica pela população constituiu um processo lento, com altos e baixos, que, de fato, só se completou ao longo do século 20.


Parte substancial desse processo está agora descrita no livro As práticas e os saberes médicos no Brasil colonial (1677-1808), de Ana Carolina de Carvalho Viotti . Doutora em História pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), Viotti é historiógrafa do Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa Histórica (Cedaph), alocado no campus de Franca da Unesp. Seu livro foi publicado com apoio da FAPESP.


“Procurei fazer o levantamento mais completo possível dos escritos publicados por médicos e cirurgiões que atuaram no Brasil durante o período considerado. No primeiro capítulo, enfoquei os médicos e a hierarquia que havia entre eles. No segundo, as doenças e como os doentes eram descritos. No terceiro estão as receitas e os ingredientes empregados em sua confecção”, disse Viotti à Agência FAPESP.


A escolha de 1808 como baliza cronológica para o encerramento do período de estudo pode parecer, à primeira vista, uma decisão óbvia. Nesse ano, a transferência da Corte Portuguesa para o Brasil acarretou transformações que tornaram a independência do país praticamente inevitável.


Como assinalou o historiador Fernando Novais, 1808 foi a data efetiva do fim do domínio colonial português no Brasil, tendo sido 1822 apenas a consolidação formal de uma situação de fato. Porém, mais especificamente, no âmbito estrito da medicina, 1808 foi também o ano da institucionalização do ensino, com a criação, por D. João VI, das escolas de cirurgia do Rio de Janeiro e de Salvador – e esta foi uma modificação substantiva, que justifica o fim do recorte da pesquisa.


A escolha de 1677 como marco inicial foi uma opção menos esperada. “Trata-se da data de publicação da obra mais antiga que repertoriei: um livro escrito por Simão Pinheiro Mourão, médico diplomado pela Universidade de Coimbra, denunciando a prática da medicina por pessoas não licenciadas”, disse Viotti.


“A escolha dessa obra – publicada com o título Queixas repetidas em ecos dos arrecifes de Pernambuco contra os abusos médicos que nas suas capitanias se observam tanto em dano das vidas de seus habitadores – foi bastante intencional, porque ela explicita, logo de início, um conflito que perpassou todo o período, constituído pela oposição entre médicos formados nas universidades europeias e práticos não diplomados e curandeiros que atuavam no país”, explicou.


A diferenciação medieval entre médicos e cirurgiões-barbeiros perdurou com bem menor rigidez na colônia do que do outro lado do Atlântico ao longo dos séculos 17 e 18.


“Na Europa, havia uma estrita divisão entre médicos e cirurgiões. Estes últimos eram os que realmente colocavam a mão na massa, enquanto os médicos exerciam uma atividade mais intelectual. Do ponto de vista hierárquico, os médicos eram mais valorizados. No Brasil, que só viria a conhecer o ensino e a consequente formação de doutores e cirurgiões no século 19, essas fronteiras foram bem menos rígidas. Aqui, médicos e cirurgiões, quando existiam, tinham atuações muitas vezes semelhantes, sendo os cirurgiões mais comuns e menos onerosos. No entanto, o recurso da população quando do acometimento de doenças quase sempre pendia para os profissionais não licenciados, como os curandeiros e parteiras”, ressaltou a pesquisadora.


Os motivos dessa preferência podem ser resumidos por três palavras: acessibilidade, custo e efetividade. Os médicos eram poucos e caros, e seus tratamentos, baseados em um sistema dogmático, nem sempre davam resultado. Os cirurgiões, em número maior e a preços menores, ofereciam uma medicina eclética, mas ainda assim objeto de estudos, que incorporava vários tipos de conhecimento e se mostrava mais efetiva no tratamento dos casos concretos.


“Era uma medicina casuística, que atuava caso a caso, pois colocava em foco o doente e não a doença. E, na prescrição das ‘mesinhas’, como eram chamados os compostos receitados, geralmente recorria a ingredientes disponíveis nas hortas das casas ou no campo ao redor, constituídos por plantas locais, capazes de substituir, com vantagem, as plantas europeias, de difícil acesso e caras”, disse Viotti.


Já os curandeiros, barbeiros, parteiras e práticos em geral valiam-se, grosso modo, da observação das técnicas médico-cirúrgicas aliada aos saberes tradicionais de origem indígena e africana. Dessa mistura empírica resultava uma assistência à saúde acessível e barata, validada pelas notícias de casos bem-sucedidos.


É evidente que a atuação desses práticos, muito bem-vista pela população, constituía uma concorrência indesejável para os médicos diplomados e cirurgiões licenciados.


“Filhos de senhores de engenho, comerciantes ricos e outras pessoas de destaque na sociedade colonial eram, muitas vezes, enviados à Europa para se diplomarem. Se fizermos um levantamento dos formados em Coimbra, em Montpellier, em Edimburgo, constataremos que havia muitos naturais do Brasil entre eles. Mas, uma vez formados, esses médicos acabavam, quase sempre, ficando na Europa. Poucos voltavam. Então, a maioria daqueles que exerciam o atendimento à saúde na colônia era constituída por cirurgiões e práticos”, disse Viotti.


Prevenção de doenças


Há várias pesquisas sobre a participação de judeus ou cristãos-novos nas chamadas “artes médicas” praticadas na colônia. Em especial, destaca-se o livro, já antigo, de Bella Herson: Cristãos-novos e seus descendentes na medicina brasileira: (1500-1850) [São Paulo, Edusp, 1996].


Segundo esse estudo, devido às perseguições da Inquisição em Portugal, muitos médicos de origem judaica buscaram um ambiente menos hostil no Brasil. De modo que, até meados do século 18, os cristãos-novos e seus descendentes foram amplamente predominantes na medicina brasileira. Mas esse tema não fez parte do escopo do trabalho de Viotti.


“Por dois motivos. Primeiro, porque havia um esforço dos cristãos-novos no sentido de ocultar sua origem, uma vez que assumi-la implicava uma série de restrições ou perseguições. Segundo, porque trabalhei com os livros publicados e todos eles, impressos em Portugal, precisavam passar por censura e só recebiam licença para publicação se fosse constatado que o autor era cristão confesso e não possuía, como se dizia, características judaizantes”, disse.


No intervalo de quase um século e meio abarcado pelo livro, houve, na Europa, uma mudança radical no paradigma médico. Como consequência da Revolução Científica do século 17, a chamada “medicina humoral”, de Hipócrates e Galeno, foi paulatinamente substituída por uma concepção mecanicista da saúde e da doença.


Segundo a medicina humoral, a vida seria mantida pelo equilíbrio de quatro “humores”: sangue, fleuma, bile amarela e bile negra, procedentes, respectivamente, do coração, do sistema respiratório, do fígado e do baço. E as doenças decorreriam do desequilíbrio de tais “humores”.


Com o triunfo do mecanicismo, ocorreu um deslocamento desse enfoque sistêmico para um enfoque analítico: em vez de serem concebidas como consequência de um desequilíbrio geral, as doenças passaram a ser atribuídas a causas específicas e localizadas, como, por exemplo, a fatores ambientais.


Com a defasagem característica, essa mudança paradigmática chegou à colônia. “A partir da segunda metade do século 18, começou-se a pensar na possibilidade de prevenção das doenças por meio da higienização dos ambientes ou de mudanças na alimentação. No caso das epidemias, também ocorreu a transição de uma concepção moralista para uma concepção bem menos pautada em conotações morais. Por exemplo, no começo do período que estudei, houve uma grande epidemia em Salvador e outra em Recife. Os médicos da época atribuíram, como uma das causas para um mal tão grande, o ‘comportamento vicioso’ dos habitantes: presença de prostitutas, casamentos com concubinas etc. Esse tipo de enfoque foi-se alterando ao longo do tempo e um fator como a falta de higiene passou a ser considerado como a grande causa dos contágios”, disse Viotti.


“O povoamento da terra, o aumento da população e seu deslocamento, de acordo com as novas demandas econômicas, também gerou obras específicas para tratar das manifestações peculiares de cada região. Por exemplo, no século 18, o Ciclo do Ouro fez com que surgissem livros médicos voltados para o clima e a alimentação de Minas Gerais e para as condições de pessoas que ficavam muito tempo imersas na água nas atividades de garimpo e bateia. Eram obras de medicina prática, escritas por cirurgiões, narrando casos bem-sucedidos para o auxílio de pessoas que não tinham possibilidade de dispor do atendimento de médicos”, disse.


Dadas as condições de poucos médicos e muitas pessoas a serem atendidas, vários religiosos, especialmente os jesuítas, passaram a atuar como médicos práticos ou enfermeiros. Até a expulsão dos jesuítas pelo Marquês de Pombal, em 1756, foram eles que mantiveram as boticas, como eram chamadas as antigas farmácias, e também os hospitais.


“O que esses religiosos faziam era observar as práticas de cura dos indígenas e dos africanos, conjugá-los aos conhecimentos letrados da época, bastante consultado por eles, e adotar os medicamentos prescritos, retirando-os de seus contextos rituais e despindo-os de suas conotações mágicas ou espirituais”, pontuou Viotti.


Com a vinda da Corte e a institucionalização do ensino da medicina, o número de médicos licenciados no Brasil aumentou, assim como aumentou sua influência na sociedade. Mas a aceitação da intervenção social dos médicos pela população apresentou flutuações ao longo do tempo.


Quase um século depois do período estudado pela pesquisadora, um caso famoso de rechaço dessa intervenção foi a Revolta da Vacina, quando a vacinação obrigatória contra a varíola, imposta por recomendação do sanitarista Oswaldo Cruz, provocou verdadeira insurreição popular no Rio de Janeiro, obrigando o governo federal a decretar estado de sítio. Entre 10 e 16 de novembro de 1904, o centro da cidade virou um campo de guerra, deixando um saldo de 30 mortos, 110 feridos e centenas de pessoas presas ou deportadas para o Acre.


“Hoje, a autoridade médica é aceita tranquilamente. E as pessoas não têm dúvidas em procurar o médico em caso de doença. Mas, durante o período estudado, seja pelas distâncias, seja pelo custo, seja pelos poucos casos conhecidos de sucesso, dificilmente o recurso ao médico ou ao licenciado era a primeira opção”, disse Viotti.

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