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Mergulho nas doenças genéticas
14 de dezembro de 2017
Em março deste ano, em uma das salas do ambulatório do quinto andar do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FM-USP), o endocrinologista Alexander Jorge atendeu um casal para apresentar a provável causa da microcefalia e da baixa estatura da filha de 4 anos. Não era a infecção da mãe com sífilis durante a gravidez, como se cogitara inicialmente, mas uma mutação em um gene de reparo do DNA conhecido como BRCA1. O médico explicou que essa mutação, identificada na filha em homozigose (duas cópias) e nos pais em heterozigose (uma cópia), favorecia o desenvolvimento de tumores de mama e ovários. Em seguida, a mulher de 32 anos comentou: “Doutor, tenho um caroço na axila”. Era um sinal de que ela própria poderia ter um câncer de mama não diagnosticado e já em expansão. Diante da situação, Jorge encaminhou a mãe de sua paciente para a equipe de oncologia, no prédio ao lado, para fazer o diagnóstico.
Jorge tem vivido situações desse tipo com frequência desde 2013, quando começou a usar uma técnica que faz o sequenciamento completo de conjuntos de trechos do DNA conhecidos como éxons, que representam de 1% a 2% do material genético. É no exoma, o conjunto dos éxons, que estão os 19 mil genes humanos, cujas mutações podem causar doenças. O sequenciamento de todo o material genético (genoma) raramente é feito para finalidades médicas, por ser mais caro e dar informações sobre trechos do DNA chamados íntrons, raramente associados a doenças.
Nos últimos anos, o sequenciamento completo de exoma se sobrepôs à abordagem anterior, que lia poucos éxons de cada vez, e tem se mostrado eficaz para identificar a mutação responsável por 8.500 doenças genéticas provocadas por um único gene em até 40% das pessoas examinadas. “A taxa de sucesso pode chegar a 80% quando já existem genes candidatos previamente selecionados para explicar o quadro clínico”, assegura Jorge.
O custo para sequenciar o exoma ainda é alto – no Brasil, pode chegar a R$ 10 mil. Outra dificuldade é que o sequenciamento fornece uma quantidade monumental de informação porque qualquer pessoa apresenta cerca de 50 mil mutações, a maioria inócuas. As análises exigem equipes especializadas de biólogos, bioinformatas e médicos para se chegar às 20 ou 30 alterações mais relevantes, que debilitam a função original dos genes e poderiam explicar os sintomas de uma doença.
Apesar das limitações, essa técnica tem ajudado a solucionar diagnósticos incertos e a direcionar tratamentos. Depois de identificar a mutação no gene BRCA1, que poderia explicar a microcefalia e a baixa estatura da menina, com o apoio de relatos semelhantes em outros países, Jorge concluiu que não deveria adotar o tratamento tradicional para baixa estatura, com hormônio de crescimento, que poderia aumentar o risco de câncer.
O sequenciamento de exoma está trazendo uma nova forma de trabalho, mais aberta e colaborativa, para pesquisadores e clínicos. Em setembro de 2016, Jorge não tinha como confirmar se uma mutação no gene BCL11B seria responsável pela deficiência intelectual, defeito na arcada dentária e baixa estatura de um adolescente. Ele entrou no site GeneMatcher, que compartilha informações sobre mutações genéticas e suas possíveis consequências com médicos, pesquisadores e pacientes. Seu relato chamou a atenção de pesquisadores da Alemanha e dos Estados Unidos que tinham casos semelhantes, associados àquela mutação, e lhe permitiu fechar o diagnóstico e reunir informações sobre uma nova doença que poderiam facilitar o trabalho de outros médicos.
“Quanto mais detalhadas as descrições dos quadros clínicos dos pacientes e das famílias, com hipóteses diagnósticas consistentes, maior a chance de fazer uma interpretação correta do exoma”, diz a bióloga Maria Rita Passos Bueno, uma das coordenadoras do Centro de Pesquisas sobre o Genoma Humano e Células-Tronco (CEGH-CEL) do Instituto de Biociências da USP. Em geral os médicos, os centros de pesquisa e os laboratórios responsáveis pelos diagnósticos trabalham de modo isolado, mas a integração de equipes, a troca de informações e a harmonização de procedimentos técnicos e éticos poderiam beneficiar os pacientes, os pesquisadores e as equipes médicas, segundo estudo de um grupo do Instituto Nacional do Câncer da Holanda publicado em maio na revista Annals of Oncology.
Um gene, várias doenças
As análises do exoma estão indicando que doenças antes vistas como distintas poderiam ter a mesma origem genética. A equipe da Mendelics, uma das empresas de São Paulo especializada em análises genéticas, em atuação desde 2013, verificou que o gene TRPV4 poderia causar tanto doenças musculares quanto ósseas. Em seu doutorado na Universidade Estadual Paulista (Unesp), sob a orientação da bióloga Silvia Rogatto, a também bióloga Maísa Pinheiro identificou uma alteração em um gene de reparo de DNA – a ser apresentada em um artigo submetido para publicação – como possível causa do câncer de mama e do de tireoide. Maísa identificou a mutação em pacientes tratados no A.C.Camargo Cancer Center, em São Paulo, que tinham um dos dois ou os dois tipos de câncer, além de familiares atingidos por esses tumores. “O câncer de mama e o de tireoide poderiam integrar uma síndrome de predisposição hereditária”, sugere Silvia, atualmente na Universidade do Sul da Dinamarca, em Odense.
O sequenciamento de exoma tem sido cada vez mais usado por grupos de pesquisa em São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Brasília e outras cidades para descobrir as causas de tumores, de doenças esqueléticas, musculares, neurológicas e outras, de origem genética. Um grupo do Baylor College of Medicine, dos Estados Unidos, fez o sequenciamento de exoma de 2 mil pacientes, a maioria crianças, com suspeita não confirmada de doenças genéticas associadas ao atraso de desenvolvimento neurológico. Todos tinham passado por testes bioquímicos de sangue, que não definiram a causa das doenças. Como relatado em um artigo de 2014 no Journal of the American Medical Association, as mutações reveladas pelo sequenciamento de exoma elucidaram a causa das doenças de 504 pacientes e permitiram planejar o tratamento e o aconselhamento genético familiar.
O CEGH-CEL atende famílias com doenças genéticas desde 1968, trabalha com sequenciamento de exoma desde 2012 e identificou novas mutações causadoras de autismo, doenças musculares, doenças esqueléticas, deficiência intelectual, obesidade e surdez. Em setembro, o laboratório de testes genéticos do centro deve começar a oferecer o miniexoma, a um custo aproximado de R$ 4 mil, para procurar mutações em até 6.709 genes já associados a doenças genéticas, em vez de examinar todos os 19 mil genes. A redução de preço pode aumentar o uso dessa técnica no sistema de saúde brasileiro.
O médico e bioinformata Guilherme Yamamoto, que trabalha no Instituto da Criança do Hospital das Clínicas e no CEGH-CEL, avaliou a eficácia do miniexoma para detectar mutações em 500 genes responsáveis por um grupo de 26 doenças genéticas de recém-nascidos com ênfase em erros inatos do metabolismo. Usando essa estratégia de sequenciamento focado de genes, ele refez os testes genéticos de 90 pessoas: 45 crianças atendidas no Hospital das Clínicas de Porto Alegre e 45 controles. Sem conhecer o diagnóstico prévio, Yamamoto encontrou um resultado falso-positivo e um verdadeiro-positivo no grupo dos 45 que inicialmente não apresentavam doença genética. No outro grupo, ele identificou a doença genética adequadamente em 22 das 45 crianças. O teste apresentou uma sensibilidade total de 50% e de 73% no grupo de erros inatos do metabolismo, embora não tenha detectado os casos de distrofia muscular, epilepsia e imunodeficiência.
“A triagem por teste genético tem uma alta especificidade, com apenas um falso-positivo”, argumentou Yamamoto. Segundo ele, essa abordagem poderia complementar a triagem neonatal, mais conhecida como teste do pezinho, que detecta doenças genéticas, metabólicas e infecciosas. “O teste do pezinho apresenta baixa especificidade, com alta frequência de falso-positivos, para algumas doenças examinadas”, diz. Segundo ele, o ganho de precisão no reconhecimento das doenças genéticas de recém-nascidos poderia adiantar o início do tratamento.
“O sequenciamento de exoma funciona bem para identificar erros inatos de metabolismo”, concorda o neurologista Fernando Kok, professor da FM-USP e diretor médico da Mendelics. Sua empresa pretende lançar neste ano um teste para identificar mutações em 260 genes responsáveis por 150 doenças genéticas em recém-nascidos.
Reanálises
Reanálises
Na Mendelics, biólogos, geneticistas, médicos recebem os resultados organizados por meio de um programa de computador chamado Abracadabra, desenvolvido pelo grupo liderado pelo neurologista David Schlesinger, presidente da empresa, destacado em 2014 pela MIT Technology Review como um dos 10 pesquisadores com menos de 35 anos mais inovadores do Brasil (ver Pesquisa FAPESP nº 220). O Abracadabra filtra as mutações por grupos de doença, indicando as prejudiciais e eliminando os achados incidentais em genes de menor interesse, e procura automaticamente relatos semelhantes em bases de dados on-line.
Outro programa da equipe do bioinformata João Paulo Kitajima, da Mendelics, começou a ser testado em agosto para identificar genes que escapam das análises normais de exoma. Esses genes têm uma peculiaridade: não toleram a perda de função de uma de suas cópias – são os chamados constraints. Com essa estratégia, espera-se resolver casos não solucionados. Em dois dias de trabalho, a médica geneticista Luiza Ramos encontrou uma alteração genética que poderia explicar um dos primeiros 52 casos não solucionados examinados por meio do novo programa. Em frente a outro computador da mesma sala, a médica geneticista Fabíola Monteiro comentou que as análises de exomas estão ampliando o conhecimento sobre genética, ao revelar muitas formas e muitas causas para as mesmas doenças. “O que está escrito nos livros de genética”, diz ela, “é muito pouco, diante do que estamos vendo”.
Para entender os resultados
Na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), um grupo coordenado pela médica geneticista Iscia Lopes Cendes atualmente desenvolve programas de computador para facilitar a interpretação dos resultados do sequenciamento de exomas, que pode ser útil na busca pela causa de doenças provocadas por apenas um gene. Esses programas também integram essas informações com as disponíveis em bases de dados como a Iniciativa Brasileira em Medicina de Precisão (BIPMed), com informação genética específica da população brasileira. Os primeiros programas devem ser liberados para uso público ainda neste ano, conta Iscia, que é professora da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp e pesquisadora do Instituto Brasileiro de Neurociência e Neurotecnologia (Brainn), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP.
Além de buscar novas estratégias para avaliar o sequenciamento de exomas, o grupo de Iscia também investiga a relação entre o custo e o benefício de se incorporar esse exame ao sistema público de saúde. Em um estudo em fase final de desenvolvimento com 150 pacientes, a médica geneticista Joana Trotta verificou que o exoma poderia indicar a provável causa de 80% de doenças neurodegenerativas com início na vida adulta, como ataxia e demência, nem sempre detectadas mesmo após sucessivos exames de imagem. A proporção de diagnósticos positivos para a deficiência intelectual foi de 20%, 10 vezes mais elevada do que a obtida pela técnica adotada no serviço público de saúde, que consiste no exame de cromossomos (cariótipo). “Aumentando a proporção de diagnósticos corretos sobre a origem das doenças, os gastos com outros exames e consultas caem e o tratamento, quando possível, pode começar logo”, conta Iscia.
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Projetos
1. Novas abordagens e metodologias na investigação genético-molecular dos distúrbios de crescimento e desenvolvimento puberal (nº 13/03236-5); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Alexander Augusto de Lima Jorge (USP); Investimento R$ 2.948.891,06.
2. CEGH-CEL – Centro de Pesquisas sobre o Genoma Humano e de Células-Tronco (nº 13/08028-1); Modalidade Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Pesquisadora responsável Mayana Zatz (USP); Investimento R$ 27.221.413,39 (para todo o projeto).
Artigos científicos
VIS, D. J. et al. Towards a global cancer knowledge network: Dissecting the current international cancer genomic sequencing landscape. Annals of Oncology. v. 28, n. 5, p. 1145-51. 2017.
YANG, Y. et al. Molecular findings among patients referred for clinical whole-exome sequencing. JAMA. v. 312, n. 18, p. 1870-79. 2014.
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