Nova técnica de edição genética corrige doenças em células humanas
Desde há mais de 3 bilhões de anos, inúmeras combinações e repetições das mesmas quatro letras foram suficientes para dar origem a todos os seres vivos do planeta. Os seres humanos são os únicos que desenvolveram um cérebro capaz de não apenas compreender o funcionamento básico desse alfabeto genético composto pelas quatro bases do DNA – adenina, guanina, timina e citosina, ou A, G, T, C –, mas reescrevê-lo graças à ferramenta de edição genética CRISPR. Isso já está sendo aplicado para corrigir defeitos genéticos em embriões humanos e está sendo estudado em pacientes com câncer de pulmão e outros tumores.
esta quarta-feira estão sendo publicados os detalhes de duas novas versões desse editor de texto genético que aperfeiçoam a capacidade dos seres humanos para reescrever o genoma dos seres vivos sem introduzir erros que poderiam gerar mutações perigosas.
O primeiro trabalho foi conduzido por Feng Zhang, um pesquisador norte-americano de origem chinesa que foi o primeiro a aplicar a CRISPR em células de mamíferos e que atualmente é um dos três nomes mais importantes nesse campo, ao lado das duas mulheres que desenvolveram a técnica, Jennifer Doudna e Emmanuelle Charpentier. Os três estão envolvidos em uma batalha legal para controlar patentes sobre essa tecnologia.
A equipe de Zhang no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês) desenvolveu uma versão da CRISPR capaz de modificar o RNA, ácido nucleico que lê e transcreve as instruções escritas no DNA para sintetizar proteínas. Todas as versões desse intermediário genético também são formadas por quatro letras, as mesmas do DNA, menos o uracilo (U) no lugar da timina (T). Essas letras sempre se juntam em pares de bases, A com T e G com C. Muitas doenças raras de origem genética são desencadeadas por uma única letra de DNA mal situada na sequência.
A edição genética se inspira no sistema imunológico rudimentar com o qual alguns micróbios guardam em seu genoma fragmentos do genoma de vírus como se fosse um retrato falado que lhes permite identificá-los e lançar contra eles algumas enzimas que cortam o RNA viral e o desativam. Zhang e sua equipe descreveram um novo grupo dessas enzimas presentes em bactérias do gênero Prevotella, que inclui micróbios que normalmente vivem nos intestinos e na vagina. Os pesquisadores desativaram a capacidade dessas enzimas – as Cas 13b – para cortar o RNA e adicionaram a elas outra proteína que troca uma base de adenina (A) por outra de inosina (I), que é lida como se fosse uma guanina (G). Esse novo sistema se liga seletivamente a sequências determinadas de RNA e troca um A por um G. As mudanças são apenas temporárias – duram o tempo que o RNA leva para se degradar dentro da célula – e reversíveis, o que não acontece com a CRISPR convencional que é aplicada ao DNA e que, uma vez alterada, permanece assim para o bem ou para o mal.
“Até agora conseguimos desativar genes, mas recuperar a função das proteínas é muito mais complicado”, explicou Zhang em um comunicado de imprensa de sua instituição. “Essa nova capacidade de editar o RNA abre mais possibilidades para reparar essas funções e tratar muitas doenças em praticamente qualquer tipo de célula”, acrescenta.
Em seu estudo, publicado pela revista Science, os pesquisadores usaram seu editor, chamado Repair, para corrigir mutações nas células humanas que causam anemia de Fanconi e um tipo de diabetes. O sistema tem uma taxa de sucesso entre 20% e 40% e a equipe reduziu o número de erros que introduz no RNA de mais de 18.000 para apenas 20.
O estudo “antecipa uma série de aplicações muito interessantes do ponto de vista da pesquisa básica, mas também sua aplicação para tratar doenças congênitas, ou para reproduzir alelos, variantes protetoras de genes, por exemplo, corrigir um oncogene mutado para evitar sua ativação e que desencadeie a transformação tumoral”, diz Lluis Montoliu, pesquisador do Centro Nacional de Biotecnologia (CSIC), que não participou da pesquisa.
Um dos objetivos de Zhang é buscar novos tratamentos para doenças mentais com uma abordagem semelhante à utilizada para o câncer ou doenças cardiovasculares. O problema é que o nível de conhecimento dessas doenças ainda é muito menor, como ele mesmo explicou. Sua nova criação pode ajudar a compreender melhor o cérebro e seu funcionamento. “Por enquanto, esta seria a única ferramenta para estudar o que acontece quando uma base de adenosina se transforma em inosina e essas mudanças estão envolvidas com o desenvolvimento do cérebro e o surgimento do câncer”, explica Marc Güell, especialista em CRISPR e pesquisador da Universidade Pompeu Fabra.
O segundo trabalho, publicado nesta quarta-feira pela revista Nature, completa a caixa de ferramentas para modificar o DNA graças à primeira versão da CRISPR capaz de transformar pares de bases de AT em GC, o que permitiria corrigir uma alteração que é responsável pela metade de todas as mutações patológicas conhecidas, de acordo com o trabalho. Além disso, essa nova versão da CRISPR reduz de 10% para 0,1% a taxa de erros introduzidos no genoma de forma involuntária. Os pesquisadores demonstraram sua nova tecnologia corrigindo duas doenças sanguíneas causadas por esse tipo de mutações em células humanas. Graças a essa nova ferramenta já é possível editar qualquer uma das quatro letras do alfabeto genético.
Fonte: El País
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